DO SILENCIAMENTO À DESINFORMAÇÃO

Injustiça epistêmica e a crise de confiança na saúde

 

Giovani Miguez da Silva[1]

Instituto Nacional de Câncer

gsilva@inca.gov.br


Resumo

Este ensaio teórico-analítico investiga a crise contemporânea de desinformação em saúde como um sintoma de uma falha estrutural mais profunda: a injustiça epistêmica. O artigo argumenta que a proliferação da desinformação e o caos da infodemia não são meramente problemas tecnológicos, mas consequências diretas de um ecossistema de conhecimento onde a confiança foi sistematicamente erodida. A análise articula o arcabouço da injustiça epistêmica — notadamente os conceitos de injustiça testemunhal e hermenêutica — com os fenômenos da desordem informacional, demonstrando como o descrédito e o silenciamento de certos sujeitos, especialmente pacientes, criam um vácuo de autoridade que narrativas falsas e pseudocientíficas exploram. A cultura da pós-verdade é, assim, reinterpretada como uma consequência da falha das instituições hegemônicas em agir de forma epistemicamente justa. Como alternativa às estratégias reativas de checagem de fatos, propõe-se um modelo de "saúde epistemicamente justa". Este construto teórico foca na restauração da confiança através da prática de virtudes epistêmicas na clínica, da responsabilidade institucional contra a ignorância deliberada e da promoção de uma literacia crítica em saúde como ferramenta de emancipação para o paciente.

Palavras-chave: injustiça epistêmica; desinformação; infodemia; confiança epistêmica; saúde coletiva.

FROM SILENCING TO DESINFORMATION

Epistemic Injustice and the Crisis of Trust in Health

Abstract

This theoretical-analytical essay investigates the contemporary crisis of health disinformation as a symptom of a deeper, structural failure: epistemic injustice. The article argues that the proliferation of disinformation and the chaos of the infodemic are not merely technological problems but direct consequences of a knowledge ecosystem where trust has been systematically eroded. The analysis articulates the framework of epistemic injustice—notably the concepts of testimonial and hermeneutical injustice—with the phenomena of informational disorder, demonstrating how the discrediting and silencing of certain subjects, especially patients, create a vacuum of authority that false and pseudoscientific narratives exploit. The post-truth culture is thus reinterpreted as a consequence of the failure of hegemonic institutions to act in an epistemically just manner. As an alternative to reactive fact-checking strategies, a model of "epistemically just health" is proposed. This theoretical construct focuses on restoring trust through the practice of epistemic virtues in clinical settings, institutional accountability against willful ignorance, and the promotion of critical health literacy as a tool for patient emancipation.

Keywords: epistemic Injustice; disinformation; infodemic;  epistemic trust; public health.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

DEL SILENCIAMIENTO A LA DESINFORMACIÓN

Injusticia epistémica y la crisis de confianza en la salud

Resumen

Este ensayo teórico-analítico investiga la crisis contemporánea de desinformación en salud como síntoma de una falla estructural más profunda: la injusticia epistémica. El artículo sostiene que la proliferación de la desinformación y el caos de la infodemia no son meramente problemas tecnológicos, sino consecuencias directas de un ecosistema de conocimiento donde la confianza ha sido sistemáticamente erosionada. El análisis articula el marco teórico de la injusticia epistémica —notablemente los conceptos de injusticia testimonial y hermenéutica— con los fenómenos del desorden informativo, demostrando cómo el descrédito y el silenciamiento de ciertos sujetos, especialmente pacientes, crean un vacío de autoridad que las narrativas falsas y pseudocientíficas explotan. La cultura de la posverdad es, así, reinterpretada como una consecuencia de la falla de las instituciones hegemónicas en actuar de forma epistémicamente justa. Como alternativa a las estrategias reactivas de verificación de hechos, se propone un modelo de "salud epistémicamente justa". Este constructo teórico se centra en la restauración de la confianza a través de la práctica de virtudes epistémicas en la clínica, de la responsabilidad institucional contra la ignorancia deliberada y de la promoción de una alfabetización crítica en salud como herramienta de emancipación para el paciente.

Palabras clave: injusticia epistémica; desinformación; infodemia; confianza epistémica; salud pública.

1 INTRODUÇÃO

            A contemporaneidade é marcada por uma profunda contradição: ao mesmo tempo em que a humanidade dispõe de um volume informacional sem precedentes, ela se vê imersa em uma crise de confiança epistêmica, onde a desinformação (Araújo, 2001) e as narrativas falsas, especialmente no campo da saúde, encontram um terreno fértil para se disseminar. Este cenário, frequentemente diagnosticado como "infodemia" (Cavalcante et al, 2022), revela-se não apenas como um problema tecnológico de circulação de conteúdo, mas como o sintoma de uma patologia social mais profunda. A raiz dessa vulnerabilidade coletiva à desinformação pode ser encontrada em falhas éticas e estruturais de como o conhecimento é produzido, validado e a quem se concede a autoridade de conhecer.

Neste contexto, o arcabouço teórico da "injustiça epistêmica", desenvolvido por Miranda Fricker (2013), surge como uma ferramenta crítica indispensável. Ao analisar como indivíduos e grupos são sistematicamente desacreditados em sua capacidade como conhecedores, seja por déficits de credibilidade baseados em preconceito (injustiça testemunhal) ou pela ausência de ferramentas conceituais para expressar suas experiências (injustiça hermenêutica), é possível compreender o processo de erosão da confiança nas instituições científicas e de saúde. A desconfiança gerada por essas injustiças cria um vácuo de autoridade que é prontamente ocupado por narrativas pseudocientíficas e teorias conspiratórias.

Este artigo propõe uma análise aprofundada dessa conexão, argumentando que a injustiça epistêmica é a condição de possibilidade para a eficácia da desinformação no campo da saúde. Ao articular os conceitos fundamentais de Fricker e seus desdobramentos com a dinâmica da infodemia e da pós-verdade, busca-se não apenas diagnosticar a crise atual, mas também delinear um modelo teórico de "saúde epistemicamente justa". Tal modelo visa deslocar o foco do mero combate à falsidade para a reconstrução ativa da confiança, por meio de práticas clínicas e institucionais que restaurem a dignidade e a autoridade dos pacientes como sujeitos de conhecimento.

 

2 MÉTODO

            Este estudo consiste em uma revisão narrativa e analítica, construída a partir da articulação de dois corpos de literatura previamente sintetizados: o primeiro sobre o conceito de injustiça epistêmica e seus desdobramentos, e o segundo sobre os fenômenos da desinformação e infodemia. A abordagem metodológica foi estruturada em duas etapas principais, culminando em um modelo analítico-crítico aplicado ao campo da saúde.

A primeira etapa consistiu na revisão e sistematização do arcabouço teórico da injustiça epistêmica. Partindo da obra seminal de Miranda Fricker, foram explorados os conceitos primários de injustiça testemunhal e injustiça hermenêutica. Em seguida, foram investigados os desdobramentos e as críticas a esse modelo, incorporando conceitos secundários como excesso de credibilidade, ignorância hermenêutica intencional, silenciamento testemunhal e injustiças sistêmicas, como o epistemicídio. A segunda etapa se dedicou à revisão da literatura sobre a crise informacional contemporânea, focando na genealogia e nas características dos conceitos de desinformação (incluindo suas variações como misinformation e mal-information), fake news, fake science, infodemia e pós-verdade, com ênfase em suas manifestações no setor da saúde.

O modelo analítico-crítico foi desenvolvido a partir da sobreposição teórica das duas etapas. Utilizou-se o quadro conceitual da injustiça epistêmica como uma lente interpretativa para analisar as causas e a dinâmica da desinformação. Argumentou-se que a erosão da confiança gerada pela injustiça epistêmica constitui a vulnerabilidade fundamental explorada pela desinformação. A partir dessa premissa, foi construído um argumento teórico que reinterpreta a desinformação como um sintoma da falha ética e estrutural das práticas epistêmicas hegemônicas. Por fim, com base nessa análise, foi proposto um modelo conceitual de "saúde epistemicamente justa", que articula as "virtudes epistêmicas" de Fricker com a necessidade de responsabilidade institucional e a promoção de uma literacia crítica em saúde como soluções para a crise de confiança.

 

3 DESENVOLVIMENTO

Para edificar o argumento central deste ensaio, o desenvolvimento a seguir desdobra-se em uma trajetória analítica que parte de dois eixos teóricos fundamentais para, então, convergir em uma síntese crítica aplicada. Inicialmente, explora-se a genealogia e a gramática conceitual da injustiça epistêmica, estabelecendo o arcabouço ético-social que fundamenta a análise. Em um segundo momento, mergulha-se no ecossistema informacional contemporâneo, mapeando as dinâmicas da desinformação e da infodemia. A articulação desses dois campos teóricos culmina na seção final, onde o primeiro é utilizado como uma lente crítica para desvelar as raízes da crise de confiança que o segundo representa, permitindo, assim, a construção de um novo modelo de intervenção para o campo da saúde.

3.1 EXPLORANDO O CONCEITO DE INJUSTIÇA EPISTÊMICA

O campo da epistemologia, tradicionalmente focado no estudo do conhecimento a partir de uma perspectiva individual e normativa, passou por uma transformação significativa ao reconhecer o aspecto social inescapável da nossa vida epistêmica (Santos, 2022, p. 40). Nesse cenário, o trabalho da filósofa Miranda Fricker surge como um marco, propondo uma investigação sobre a complementaridade entre as estruturas político-sociais e as práticas de produção e transmissão de conhecimento. O resultado é o conceito de "injustiça epistêmica", um "tipo distinto de injustiça em que um mal é feito a alguém especificamente em sua capacidade como conhecedor" (Sinclair, 2025, p. 1, tradução nossa).

A seguir apresentamos uma revisão narrativa que percorre o estado da arte do conceito, partindo de sua formulação original por Fricker e explorando seus desdobramentos teóricos e aplicações práticas, com base nos artigos encontrados. A análise está dividida em três seções: a primeira descreve os conceitos primários de Fricker; a segunda aborda os conceitos secundários que expandiram o debate; e a terceira realiza uma análise crítica da aplicação prática do conceito em diferentes domínios.

 

3.1.1 Explicitando os conceitos primários em Fricker

A teoria de Miranda Fricker, apresentada em sua obra seminal de 2007, diagnostica as falhas morais e epistêmicas presentes em nossas interações cotidianas, construindo uma "teoria híbrida, ético-epistêmica" (Santos, 2022, p. 562) para identificar e corrigir tais falhas. A injustiça epistêmica é, em sua essência, uma exclusão motivada por preconceito que prejudica um sujeito em sua capacidade de saber (Santos, 2022, p. 563). Essa injustiça é perpetuada pelo que Fricker denomina "poder identitário", uma forma de poder social que opera através de concepções e estereótipos compartilhados sobre identidades sociais (Santos, 2022, p. 564). Fricker divide esse fenômeno em duas categorias principais: a injustiça testemunhal e a injustiça hermenêutica.

A injustiça testemunhal é a manifestação mais direta e transacional. Ela ocorre quando um ouvinte atribui a um falante um "déficit de credibilidade devido à operação de preconceito em seu julgamento" (Fricker, 2013, p. 1319, tradução nossa). Esse déficit não é um mero erro de avaliação, mas um prejuízo sistemático ligado a um preconceito de identidade — seja de raça, gênero, classe, etc. — que distorce a percepção do ouvinte. Fricker (2024) ilustra esse conceito com dois exemplos icônicos da literatura e do cinema (McKinnon, 2016, p. 439).

O primeiro é o caso de Tom Robinson em O Sol é para Todos, de Harper Lee. Robinson, um homem negro falsamente acusado de estuprar uma mulher branca no sul dos Estados Unidos na década de 1930, tem seu testemunho completamente desacreditado por um júri branco, apesar das evidências a seu favor. Seu depoimento é recebido com desconfiança e sua credibilidade é minada unicamente por sua identidade racial (Santos, 2022, p. 566). O segundo exemplo vem de O Talentoso Ripley, onde Marge Sherwood suspeita corretamente que Tom Ripley assassinou seu noivo, Dickie. Suas preocupações e evidências são descartadas pelos homens ao seu redor como mera "intuição feminina" (Sinclair, 2025, p. 3, tradução nossa). Em ambos os casos, os falantes são prejudicados em sua capacidade de transmitir conhecimento devido a preconceitos de identidade que operam na "economia de credibilidade" (McKinnon, 2016, p. 438, tradução nossa) daquele contexto social.

A injustiça hermenêutica, por sua vez, é mais sutil e estrutural. Ela acontece em um estágio anterior à comunicação, quando "uma lacuna em nossos recursos interpretativos coletivos coloca alguém em uma desvantagem injusta em termos de compreensão de suas próprias experiências sociais específicas" (Sinclair, 2025, p. 2, tradução nossa). O dano aqui não é causado pela má-fé de um ouvinte individual, mas por uma falha nas ferramentas conceituais que a sociedade oferece. Como aponta Santos (2022, p. 571), uma injustiça hermenêutica "não tem, necessariamente, um culpado ou causador individual. Ela é causada pela estrutura de marginalização social".

O exemplo clássico para ilustrar esse conceito é a experiência do "assédio sexual" antes que o termo fosse cunhado e socialmente compreendido (McKinnon, 2016, p. 441). Mulheres que sofriam com comportamentos predatórios no ambiente de trabalho não possuíam o recurso conceitual para nomear, compreender e comunicar sua experiência, tanto para si mesmas quanto para os outros. Essa ausência de ferramentas interpretativas é fruto de uma "marginalização hermenêutica" (Fricker, 2013, p. 1319, tradução nossa), na qual grupos socialmente desfavorecidos são excluídos do processo de criação de significados sociais.

Como antídoto para essas injustiças, Fricker propõe o cultivo de virtudes epistêmicas corretivas. A virtude da justiça testemunhal consiste em uma "força antipreconceituosa e racional presente na percepção testemunhal" (Santos, 2022, p. 577), que permite ao ouvinte neutralizar ativamente o impacto de preconceitos em seus julgamentos de credibilidade. Já a virtude da justiça hermenêutica se manifesta como uma sensibilidade para a possibilidade de que a dificuldade de comunicação de um interlocutor se deva a uma lacuna nos recursos coletivos, e não a uma falha individual (Santos, 2022, p. 579).

 

Quadro 1 -  Conceitos Centrais em Miranda Fricker

CONCEITO

DESCRIÇÃO

Injustiça Epistêmica

Um mal praticado contra alguém especificamente em sua capacidade como conhecedor, motivado por preconceito.

Injustiça Testemunhal

Ocorre quando um ouvinte atribui um déficit de credibilidade a um falante devido a um preconceito de identidade. É uma injustiça transacional.

Injustiça Hermenêutica

Ocorre quando uma lacuna nos recursos interpretativos coletivos da sociedade impede um indivíduo ou grupo de compreender ou comunicar suas experiências sociais. É uma injustiça estrutural.

Poder Identitário

Uma forma de poder social que depende de concepções e estereótipos socialmente compartilhados sobre identidades para controlar as ações dos outros.

Virtude da Justiça Testemunhal

Uma sensibilidade crítica e corretiva que o ouvinte desenvolve para neutralizar ativamente o impacto de preconceitos em seus julgamentos de credibilidade.

Virtude da Justiça Hermenêutica

Uma sensibilidade reflexiva para a possibilidade de que a ininteligibilidade de um falante se deva a uma lacuna hermenêutica, e não a uma falha pessoal, ajustando o julgamento de credibilidade para compensar essa desvantagem.

Fonte: Elaboração pelo autor

3.1.2 Conceitos secundários: críticas e expansões do modelo

Embora a estrutura de Fricker tenha sido inovadora, ela também gerou um intenso debate que expandiu e, em alguns pontos, desafiou suas formulações originais. A literatura posterior identificou novas formas de injustiça e aprofundou a análise de suas causas e consequências, movendo-se de um foco mais individual para um olhar sobre dinâmicas estruturais e sistêmicas.

Uma das primeiras e mais importantes críticas ao modelo de Fricker foi seu foco quase exclusivo no déficit de credibilidade. Autores como José Medina argumentaram que ignorar o excesso de credibilidade era perder uma parte fundamental da dinâmica. Medina, analisando o caso de Tom Robinson, aponta que o déficit de credibilidade de Tom "é parcialmente produzido pelo testemunho de Mayella – como uma garota branca simpática em uma cultura profundamente racista e anti-negra. Ela desfruta de um excesso de credibilidade que produz, em parte, o déficit de credibilidade de Tom" (McKinnon, 2016, p. 440, tradução nossa). Assim, a credibilidade não é vista como um bem meramente distributivo, mas como interativa e relacional (McKinnon, 2016, p. 440).

Expandindo a dimensão da injustiça hermenêutica, Gaile Pohlhaus Jr. (2012) introduziu o conceito de ignorância hermenêutica intencional. Essa forma de injustiça ocorre quando "conhecedores em posição dominante se recusam a reconhecer ferramentas epistêmicas desenvolvidas a partir do mundo experienciado por aqueles situados marginalmente" (citado em McKinnon, 2016, p. 442, tradução nossa). Diferente da lacuna estrutural de Fricker, aqui há uma recusa ativa em aceitar conceitos que poderiam iluminar a experiência de grupos oprimidos, como a resistência ao conceito de "cultura do estupro" ou "privilégio branco" (McKinnon, 2016, p. 442).

Kristie Dotson (2011), por sua vez, descreveu duas outras formas de violência epistêmica que radicalizam a injustiça testemunhal: o silenciamento testemunhal (testimonial quieting) e o sufocamento testemunhal (testimonial smothering). O primeiro ocorre quando o depoimento de um falante é tão desconsiderado que é como se ele não tivesse sido dito; sua fala não chega a ser avaliada, sendo simplesmente ignorada (McKinnon, 2016, p. 442). O sufocamento, por outro lado, é um ato de autocensura: a falante, antecipando a hostilidade ou a descrença da audiência, "escolhe não falar" para se proteger (McKinnon, 2016, p. 442, tradução nossa).

Finalmente, pesquisas mais recentes, como a de Cummings et al. (2022), propuseram uma estrutura mais ampla que vai além das injustiças individuais e estruturais para incluir injustiças sistêmicas. Estas são injustiças profundamente enraizadas em sistemas de conhecimento, muitas vezes legados do colonialismo. Essa estrutura inclui: “A injustiça linguística, a colonialidade do sistema de conhecimento para o desenvolvimento, o epistemicídio e a injustiça curricular” (Cummings et al, 2022, p. 1970, tradução nossa).

O epistemicídio, definido como a "morte do conhecimento de uma cultura subordinada" (Cummings et al, 2022, p. 1971, tradução nossa), e a injustiça linguística, onde a dominância de uma língua como o inglês marginaliza falantes não-nativos e tradições intelectuais inteiras, representam a escala mais radical e destrutiva da injustiça epistêmica.

 

 

                                                     

 

 

 

 

 

 

 

Quadro 2 -  Relações Conceituais: de Fricker aos Desdobramentos Secundários

CONCEITOS PRIMÁRIOS (FRICKER)

CONCEITOS SECUNDÁRIOS E DERIVADOS

DESCRIÇÃO DA RELAÇÃO

PRINCIPAIS ANALISADOS

Injustiça Testemunhal

Excesso de Credibilidade

É a outra face da injustiça testemunhal. O excesso de credibilidade concedido a um grupo dominante produz ou reforça o déficit de credibilidade de um grupo marginalizado. A credibilidade é relacional.

José Medina (citado por McKinnon e Sinclair)

Injustiça Testemunhal

Silenciamento e Sufocamento Testemunhal

São formas radicais de injustiça testemunhal. No silenciamento, o testemunho é completamente ignorado. No sufocamento, o falante se autocensura preventivamente.

Kristie Dotson (citado por McKinnon)

Injustiça Hermenêutica

Ignorância Hermenêutica Intencional

É uma forma ativa de perpetuar a injustiça hermenêutica. Grupos dominantes se recusam a adotar ou reconhecer recursos conceituais desenvolvidos por grupos marginalizados, mantendo-os na ignorância.

Gaile Pohlhaus Jr. (citado por McKinnon)

Injustiça Hermenêutica

Injustiça Sistêmica (Epistemicídio, Injustiça Linguística, etc.)

Representa a manifestação mais ampla e estrutural da injustiça hermenêutica, onde sistemas inteiros de conhecimento e linguagem são destruídos ou marginalizados, criando lacunas hermenêuticas massivas e duradouras.

Cummings et al. (citando de Sousa Santos, Catala, etc.)

Injustiça Epistêmica (Geral)

Injustiça Institucional

É a manifestação da injustiça epistêmica dentro de instituições (legais, educacionais, etc.), onde as regras e práticas podem ser estruturalmente enviesadas, mesmo sem preconceito individual explícito.

Elizabeth Anderson (citado por Sinclair)

Fonte: Elaboração pelo autor

 

 

 

3.1.3 O conceito na prática: uma ferramenta de análise crítica

A força do arcabouço da injustiça epistêmica reside em sua capacidade de transcender o debate puramente filosófico e se tornar uma ferramenta diagnóstica para analisar problemas concretos. A aplicação do conceito revela como a desvalorização do conhecimento de certos grupos perpetua desigualdades em domínios como a política, o desenvolvimento sustentável e a saúde.

No campo político, a própria Fricker (2013) argumenta que a justiça epistêmica é uma "condição constitutiva da não-dominação e, portanto, de um ideal liberal central de liberdade" (Fricker, 2013, p. 1317, tradução nossa). Para que um cidadão seja verdadeiramente livre, ele deve ter a capacidade de contestar as interferências do Estado ou de outros cidadãos. Se, no entanto, ele sofre injustiça testemunhal (sua palavra é desacreditada) ou hermenêutica (sua queixa é ininteligível), sua capacidade de contestação é anulada, e ele se torna dominado. O caso de Duwayne Brooks, a principal testemunha do assassinato de Stephen Lawrence, é emblemático: os policiais, por preconceito racial, não o ouviram adequadamente, impossibilitando uma contestação efetiva do crime e deixando-o em uma relação de dominação perante os agressores (Fricker, 2013, p. 1325).

No âmbito do desenvolvimento sustentável, o conceito ilumina as dinâmicas de poder entre o Norte e o Sul Global. Cummings et al. (2022) demonstram como projetos de desenvolvimento frequentemente cometem injustiça epistêmica ao marginalizar o conhecimento local e indígena. As comunidades são tratadas não como detentoras de saberes valiosos, mas como "principalmente beneficiárias do conhecimento, em vez de 'conhecedoras' ou 'detentoras de conhecimento' por direito próprio" (Cummings et al, 2022, p. 1969, tradução nossa). Essa "objetificação epistêmica" (Cummings et al, 2022, p. 1970, tradução nossa) não apenas desrespeita as comunidades, mas também impede o aproveitamento de conhecimentos essenciais para enfrentar problemas complexos como as mudanças climáticas, minando a própria eficácia das políticas de desenvolvimento.

Talvez a aplicação mais visceral do conceito ocorra no contexto clínico. Leah Rosen (2021) argumenta que a injustiça epistêmica é a "razão subjacente pela qual alguns testemunhos de pacientes são valorizados acima de outros" (Rosen, 2021, p. 1, tradução nossa). Fatores como raça, gênero e status socioeconômico influenciam diretamente a credibilidade epistêmica e, por consequência, a qualidade do cuidado recebido. Isso se manifesta de forma gritante no tratamento da dor:

 

Infelizmente, este é um resultado comum, como refletido em dados clínicos que mostram que a dor experimentada por pacientes negros nos Estados Unidos é subdiagnosticada e subtratada, quando comparada à dor experimentada por pacientes brancos (Rosen, 2021, p. 2, tradução nossa).

Além disso, a própria identidade de "paciente" já insere a pessoa em uma dinâmica de poder assimétrica (Rosen, 2021, p. 2). Condições estigmatizadas, como transtornos de saúde mental ou doenças crônicas como a Síndrome da Fadiga Crônica, transformam os pacientes em "pessoas doentes", cujos testemunhos sobre seus próprios corpos são frequentemente vistos como menos confiáveis (Rosen, 2021, p. 3). Como solução, Rosen propõe uma intervenção baseada em terapia narrativa, que busca ativamente revelar o "Conhecimento Único" do paciente, forçando o profissional de saúde a reconhecê-lo como um conhecedor legítimo e essencial para o processo de cuidado.

A jornada do conceito de injustiça epistêmica, desde sua formulação por Miranda Fricker até suas múltiplas aplicações, demonstra sua notável relevância. O que começou como uma distinção filosófica entre as formas de injustiça testemunhal e hermenêutica evoluiu para um poderoso arcabouço analítico, capaz de diagnosticar desigualdades profundamente enraizadas em nossas instituições e práticas sociais. A análise dos artigos revela um campo dinâmico, que continua a expandir suas fronteiras para incluir formas sistêmicas de opressão epistêmica, como o epistemicídio, e a aplicá-las em contextos práticos urgentes. Ao nos forçar a perguntar "quem é ouvido?" e "quais formas de saber importam?", a teoria da injustiça epistêmica não apenas enriquece a filosofia, mas oferece uma lente indispensável para a luta por uma sociedade genuinamente mais justa.

 

3.2 ATRAVESSANDO A TEMPESTADE INFORMACIONAL

O cenário informacional contemporâneo é paradoxal: nunca se teve tanto acesso à informação e, ao mesmo tempo, nunca se esteve tão exposto à desinformação (Oliveira, 2024, p. 12). Essa nova realidade, marcada pela circulação massiva de conteúdos falsos, enganosos ou distorcidos, tem sido descrita por meio de um conjunto de conceitos inter-relacionados, como desinformação, fake news, pós-verdade e, mais recentemente, infodemia (Araújo, 2024, p. 31). A pandemia de COVID-19, em particular, exacerbou essa dinâmica, transformando a gestão da informação em um desafio central para a saúde coletiva e para a estabilidade social (Vidal et al., 2025, p. 4).

Esta segunda parte revisão narrativa investiga o estado da arte dos conceitos de desinformação e infodemia, com base em uma análise dos artigos fornecidos. O texto está estruturado em três seções: a primeira explora as múltiplas facetas do conceito de desinformação; a segunda aprofunda a genealogia e as implicações do conceito de infodemia; e a terceira discute as relações conceituais entre esses fenômenos e seus desdobramentos práticos, especialmente no campo da saúde.

 

3.2.1 O conceito de desinformação

A desinformação, embora não seja um fenômeno novo, adquiriu novas configurações em termos de alcance e velocidade com o advento dos ambientes digitais (Oliveira, 2024, p. 12). De forma geral, pode ser definida como "a informação enganosa que tem a função de enganar" (Oliveira, 2024, p. 12, tradução nossa), induzindo o receptor a acreditar em algo tendencioso, impreciso ou descontextualizado. Sua complexidade, no entanto, exige uma análise mais detalhada de suas manifestações e intencionalidades.

Wardle e Derakhshan (2017) propõem uma estrutura conceitual para a "desordem da informação", diferenciando três tipos com base nas dimensões de dano e falsidade (citado em Oliveira, 2024, p. 29; Cavalcante et al., 2022, p. 40). Essa tipologia ajuda a refinar o entendimento sobre as diferentes formas de circulação de conteúdo problemático:

·       Misinformation (informação errada): Ocorre quando informações falsas são compartilhadas sem a intenção de causar dano, como no caso de um compartilhamento inadvertido (Oliveira, 2024, p. 29).

·       Disinformation (desinformação): Refere-se a informações falsas compartilhadas deliberadamente com o intuito de causar prejuízo, como notícias fabricadas para fins políticos ou eleitorais (Oliveira, 2024, p. 29).

·       Mal-information (má informação): Acontece quando informações verdadeiras são utilizadas fora de contexto para causar danos a uma pessoa, organização ou grupo social (Oliveira, 2024, p. 30).

Dentro dessa paisagem, as fake news surgem como uma manifestação específica e estratégica da desinformação. Sua principal característica é a tentativa de se passar por notícia jornalística verdadeira, apropriando-se da legitimidade e da estrutura do discurso jornalístico para ganhar credibilidade (Araújo, 2021, p. 4). Diferente das distorções ou enquadramentos parciais que historicamente marcaram a imprensa, a novidade das fake news é "a construção de um relato completamente falso, de uma notícia de um fato que nunca aconteceu" (Araújo, 2021, p. 4). De forma análoga, a fake science ou pseudociência se apropria do prestígio e da linguagem científica para difundir conteúdos sem comprovação, visando atender a interesses comerciais, políticos ou ideológicos (Oliveira, 2024, p. 34).

Outros fenômenos complementam o ecossistema da desinformação. O discurso de ódio, por exemplo, não busca ser factual, mas mobilizar emoções como medo e ressentimento para criar um estado de conflito, tornando a verdade irrelevante em prol da aniquilação simbólica ou real do "inimigo" (Araújo, 2021, p. 5). Já o negacionismo científico se configura como uma estratégia articulada para semear a dúvida sobre consensos científicos que contrariam interesses econômicos ou políticos, como ocorreu historicamente com a indústria do tabaco e, mais recentemente, com o aquecimento global e as vacinas (Araújo, 2024, p. 44).

 

3.2.2 O conceito de infodemia

O termo infodemia ganhou proeminência global durante a pandemia de COVID-19, sendo definido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como o "excesso de informações (algumas verdadeiras, outras não) que dificulta localizar e acessar fontes de informação e orientações confiáveis quando se necessita" (Araújo, 2021, p. 7). Trata-se de uma "caracterização patológica da dimensão informacional" (Cavalcante et al., 2022, p. 35), onde a velocidade e o volume de circulação de informações falsas superam os de conteúdos de qualidade, impactando diretamente a tomada de decisões. Embora popularizado recentemente, o conceito tem uma genealogia mais longa. A preocupação com o excesso de informação remonta a expressões como "explosão de informação" na década de 1940 e "sobrecarga informativa" nos anos 1960 (Cavalcante et al., 2022, p. 33-34).

A etimologia da palavra, unindo "informação" e "epidemia", sugere uma disseminação viral de conteúdos, potencializada pelas redes sociais (Cavalcante et al., 2022, p. 32). Esse excesso informacional pode provocar diversas "patologias informacionais", como a sobrecarga informacional e a ansiedade informacional, que é a condição de estresse causada pela inabilidade de acessar ou compreender a informação necessária (Oliveira, 2024, p. 28).

O termo infodemiologia, cunhado por Gunther Eysenbach (2002), refere-se à disciplina que estuda os determinantes e a distribuição da informação em saúde na internet e em outros meios (Rodrigues-Júnior, 2025, p. 5; Silva; Westin; Zem-Mascarenhas, 2025, p. 2). A infodemiologia utiliza métodos epidemiológicos para analisar a frequência de informações corretas ou incorretas e identificar situações em que dados conflitantes ou fraudes prevalecem sobre a informação baseada em evidências (Silva; Westin; Zem-Mascarenhas, 2025, p. 2). A partir dos estudos nesse campo, originou-se o conceito de "infodemia" para descrever o aumento massivo no volume de informações associadas a um tema específico (Cavalcante et al., 2022, p. 39). A OMS, reconhecendo a infodemia como um problema de saúde pública, estabeleceu quatro pilares para sua gestão (Cavalcante et al., 2022, p. 40):

1.     Tradução do conhecimento: Garantir que a informação científica seja traduzida de forma precisa para o público (Cavalcante et al., 2022, p. 40-41).

2.     Refinamento e verificação: Filtrar e qualificar as fontes de informação (Cavalcante et al., 2022, p. 41).

3.     Literacia em saúde: Capacitar a população para obter, compreender e avaliar informações sobre saúde (Cavalcante et al., 2022, p. 41).

4.     Monitoramento e infovigilância: Analisar os mecanismos de busca e troca de informações para detectar surtos de desinformação (Cavalcante et al., 2022, p. 41).

3.2.3 Relações conceituais e desdobramentos práticos

A desinformação e a infodemia não são fenômenos isolados, mas profundamente interligados, operando dentro de uma "cultura da pós-verdade" (Araújo, 2021, p. 7). A pós-verdade caracteriza um cenário onde apelos à emoção e crenças pessoais se tornam mais influentes na formação da opinião pública do que fatos objetivos (Oliveira, 2024, p. 37). Ela se produz na confluência de três condições: a ampla disseminação de informações falsas, a possibilidade técnica de checagem e o desinteresse das pessoas em fazê-lo (Araújo, 2021, p. 7). Esse "desdém pela verdade" cria um terreno fértil para que a desinformação floresça em meio à infodemia.

No campo da saúde, essa dinâmica se torna particularmente perigosa (Vidal et al., 2025, p. 7). A desinformação impacta diretamente a relação médico-paciente, gerando um cenário de tensionamento e desconfiança (Araújo; Gouvea; Lima, 2025, p. 11). Pacientes cada vez mais buscam informações de saúde online, dando origem ao "e-paciente" (Araújo; Gouvea; Lima, 2025, p. 3). Essa prática pode ter efeitos positivos, como o empoderamento para o autocuidado, mas também negativos, como a adesão a fontes não confiáveis. A pesquisa de Araújo, Gouvea e Lima (2025, p. 3) revela que, embora a busca por informações possa conferir uma sensação de empoderamento, ela também pode "gerar hostilidade e irritabilidade no(a) médico(a), favorecendo a criação de estratégias que invalidam a capacidade dos pacientes de se informarem".

A exposição a informações falsas está associada a consequências concretas, como a hesitação vacinal, o uso de terapias não comprovadas e a adoção de condutas prejudiciais à saúde (Vidal et al., 2025, p. 1; Lacerda, 2025, p. 1). Durante a pandemia de COVID-19, por exemplo, a desinformação levou a óbitos e sequelas graves devido ao uso de tratamentos sem eficácia científica e à recusa vacinal (Oliveira, 2024, p. 77-78). O caso da fosfoetanolamina sintética, a "pílula do câncer", ilustra como a desinformação pode mobilizar a opinião pública a ponto de levar à sanção de uma lei que autorizava o uso de uma substância sem registro sanitário, ignorando os valores científicos e a competência dos órgãos reguladores (Rodrigues-Júnior, 2025, p. 12; Lacerda, 2025, p. 3).

A vulnerabilidade à desinformação é multifatorial. Além do baixo nível de escolaridade e de literacia em saúde (Vidal et al., 2025, p. 7), fatores psicológicos e sociais desempenham um papel crucial. O viés de confirmação, a tendência de dar mais peso a informações que confirmam crenças preexistentes, é um mecanismo central (Araújo, 2024, p. 41). As pessoas tendem a buscar informações que lhes deem conforto e reafirmem suas visões de mundo (Oliveira, 2024, p. 36). A dinâmica das redes sociais, com a formação de "bolhas" ou "câmaras de eco", intensifica esse processo (Araújo, 2021, p. 8). Além disso, a confiança em quem compartilha a informação — como amigos e familiares — diminui o ceticismo e facilita a propagação de conteúdos falsos (Oliveira, 2024, p. 37, 82).

Diante desse cenário, o combate à desinformação exige uma abordagem multissetorial e coordenada. As estratégias propostas na literatura incluem:

campanhas educativas, fortalecimento da literacia em saúde, comunicação científica acessível e a responsabilização das plataformas digitais, a fim de reduzir os riscos associados à circulação de informações falsas e assegurar condições mais equitativas para a promoção da saúde coletiva (Vidal et al., 2025, p. 2).

É fundamental que profissionais de saúde atuem ativamente na educação dos pacientes, traduzindo o conhecimento técnico em uma linguagem acessível e construindo uma relação de confiança que sirva como antídoto à desinformação (Oliveira, 2024, p. 89-90).

 

 

 

 

 

 

Quadro 3 -  Síntese Conceitual: Desinformação, Infodemia e Pós-Verdade

CONCEITO CENTRAL

DESCRIÇÃO

CONCEITOS SECUNDÁRIOS E RELACIONADOS

RELAÇÃO E DINÂMICA

Desinformação

Informação enganosa com a intenção de ludibriar (Oliveira, 2024, p. 12). Pode ser classificada em misinformation (sem intenção de dano), disinformation (com intenção) e mal-information (uso de informação verdadeira para causar dano) (Oliveira, 2024, p. 29-30).

Fake News, Fake Science, Discurso de Ódio, Negacionismo (Araújo, 2021, p. 4-6).

São manifestações específicas da desinformação que se utilizam de diferentes estratégias (imitar o jornalismo, a ciência, apelar ao ódio ou negar fatos) para atingir seus objetivos (Araújo, 2021, p. 4-6).

Infodemia

Excesso de informações, verdadeiras ou falsas, que dificulta o acesso a fontes confiáveis (Araújo, 2021, p. 6-7). O estudo desse fenômeno é a infodemiologia (Cavalcante et al., 2022, p. 38).

Sobrecarga informacional, Ansiedade informacional, Patologias informacionais (Oliveira, 2024, p. 27-28).

A infodemia é o ambiente de superabundância que causa sobrecarga e ansiedade nos indivíduos, tornando-os mais vulneráveis à desinformação (Vidal et al., 2025, p. 4).

Pós-verdade

Contexto em que apelos à emoção e crenças pessoais se tornam mais influentes do que fatos objetivos na formação da opinião pública (Oliveira, 2024, p. 37).

Viés de confirmação, Bolhas informacionais/Câmaras de eco, Cultura do amadorismo (Araújo, 2024, p. 41).

A pós-verdade é a "cultura" ou o "ethos" que normaliza o desdém pela verdade (Araújo, 2021, p. 7). O viés de confirmação e as bolhas criadas pelos algoritmos são os mecanismos técnicos e cognitivos que sustentam esse fenômeno (Araújo, 2021, p. 8).

Fonte: Elaboração pelo autor

Esta segunda rodada de revisão narrativa dos artigos demonstra que a desinformação e a infodemia são fenômenos intrinsecamente ligados, que se retroalimentam em um ecossistema digital complexo e desafiador (Vidal et al., 2025, p. 1). A profusão de conteúdos falsos ou enganosos não é apenas uma disfunção técnica, mas uma crise epistêmica com profundas implicações sociais, políticas e, sobretudo, para a saúde coletiva (Lacerda, 2025, p. 1). O combate a essa "desordem informacional" não pode se limitar a ações paliativas, como a simples checagem de fatos, mas exige uma resposta estrutural e integrada (Vidal et al., 2025, p. 9).

É fundamental reconhecer que a desinformação prospera em um terreno de desconfiança nas instituições, de desigualdades sociais e de baixa literacia em saúde (Araújo; Gouvea; Lima, 2025, p. 10). Portanto, a solução passa, necessariamente, pelo fortalecimento dos pilares da democracia e da ciência: a educação crítica, a comunicação transparente e a valorização do conhecimento baseado em evidências (Oliveira, 2024, p. 108). Apenas com a articulação entre governos, plataformas digitais, profissionais de saúde, cientistas e a sociedade civil será possível mitigar os efeitos nocivos da desinformação e construir um ambiente informacional mais saudável e confiável (Vidal et al., 2025, p. 9).

 

3.3 DO SILENCIAMENTO À DESINFORMAÇÃO: A INJUSTIÇA EPISTÊMICA COMO RAIZ DA CRISE DE CONFIANÇA NA SAÚDE

Vivemos uma era de contradições profundas. Em um mundo inundado por um volume sem precedentes de dados, onde a informação deveria ser a ponte para o esclarecimento, assistimos à ascensão de um ceticismo corrosivo e à viralização de narrativas comprovadamente falsas, especialmente no sensível campo da saúde. O diagnóstico comum aponta para a "desinformação" e a "infodemia" como as patologias centrais de nosso tempo (Oliveira, 2024, p. 12). Contudo, essa análise, embora correta, é superficial. Ela descreve os sintomas, mas negligencia a doença subjacente. A desinformação não prospera no vácuo; ela floresce em um ecossistema epistêmico previamente adoecido, cujo solo foi erodido pela desconfiança e pela alienação. A verdadeira raiz dessa crise de confiança reside em um fenômeno mais antigo e estrutural: a injustiça epistêmica.

Ao utilizarmos o arcabouço da injustiça epistêmica como uma lente crítica, a "desordem informacional" deixa de ser um mero problema tecnológico para se revelar como a consequência direta de uma prolongada falha ética e social em como validamos o conhecimento e a quem concedemos a autoridade de conhecer.

 

3.3.1 O ecossistema adoecido: como a injustiça epistêmica fertiliza a desinformação

Um ecossistema informacional saudável depende de uma economia de credibilidade funcional, onde a confiança é distribuída de maneira equitativa e os canais de conhecimento são acessíveis. A injustiça epistêmica, em suas múltiplas formas, atua como um agente tóxico que contamina esse sistema, criando as condições ideais para que a desinformação se instale e se dissemine.

A injustiça testemunhal, a prática de atribuir um déficit de credibilidade a um falante com base em preconceitos de identidade (Fricker, 2013, p. 1319, tradução nossa), é a ferida aberta por onde a confiança escapa. No contexto clínico, essa injustiça é uma experiência cotidiana e violenta. Quando um médico subestima a dor de um paciente negro ou descarta os sintomas de uma paciente mulher como "histeria" ou "ansiedade" (Rosen, 2021, p. 2), ele não está apenas cometendo um erro de diagnóstico. Ele está ativamente comunicando ao paciente que sua capacidade de conhecer e relatar a própria realidade corporal é inválida. Esse ato de invalidação é profundamente alienante. O paciente, silenciado e desacreditado pela autoridade médica, não apenas perde a confiança naquele profissional, mas pode estender essa desconfiança a todo o sistema de saúde. É precisamente nesse vácuo de credibilidade que as narrativas de desinformação encontram um público receptivo. Figuras carismáticas em redes sociais, que oferecem "curas" alternativas e teorias conspiratórias, prosperam ao validar as experiências que a medicina institucional ignorou, oferecendo um perigoso placebo de reconhecimento epistêmico.

Essa alienação é aprofundada pela injustiça hermenêutica, uma falha estrutural que deixa certos grupos sem as ferramentas conceituais para dar sentido às suas próprias experiências (Sinclair, 2025, p. 2, tradução nossa). Quando um paciente sofre de uma condição crônica mal compreendida pela ciência hegemônica, ele não apenas enfrenta a doença, mas também a angústia de não ter seu sofrimento nomeado ou legitimado. A medicina, ao não fornecer um "recurso interpretativo", deixa-o isolado. Essa lacuna é um convite para que a pseudociência ofereça explicações simplistas e sedutoras. O caso da fosfoetanolamina sintética, a "pílula do câncer", é um exemplo trágico: em meio ao desespero e à ausência de respostas definitivas da oncologia tradicional, uma narrativa de cura milagrosa ganhou imensa força popular, pois oferecia uma linguagem de esperança onde a ciência oferecia incerteza (Lacerda, 2025, p. 3; Rodrigues-Júnior, 2025, p. 12).

A pós-verdade, portanto, pode ser reinterpretada não como um simples desprezo pelos fatos, mas como um sintoma extremo dessa erosão. Para um indivíduo que foi sistematicamente desacreditado (injustiça testemunhal) e cuja experiência foi tornada ininteligível (injustiça hermenêutica), a própria noção de "fato objetivo" emanado das instituições que o oprimiram torna-se suspeita. A emoção, a experiência pessoal e a validação comunitária emergem como critérios epistêmicos mais confiáveis, não por irracionalidade, mas porque os canais da racionalidade institucional falharam em ser justos.

Nesse ecossistema fraturado, a infodemia atua como um amplificador caótico. A torrente de informações não encontra um público capaz de filtrá-la com base em autoridades confiáveis, pois a confiança já foi quebrada. O resultado é a paralisia ou a adesão à narrativa que parecer mais alinhada com a identidade e as feridas epistêmicas de cada um.

 

3.3.2 Proposta de um modelo crítico: rumo a uma ecologia de cuidado epistêmico na saúde

Combater a desinformação em saúde com mais checagem de fatos e campanhas informativas é tratar o sintoma ignorando a causa. É como oferecer um mapa a alguém que foi ensinado a desconfiar de todos os cartógrafos. A solução real e duradoura não é meramente técnica, mas fundamentalmente ética. É preciso curar o ecossistema informacional, e isso só é possível através da construção de um modelo de saúde epistemicamente justo. Este modelo desloca o foco da "correção da informação" para a "reparação da confiança" e se sustenta em três pilares conceituais:

1.     A Prática da Escuta Radical e Validação Clínica: A mudança fundamental ocorre na relação clínico-paciente, reimaginada pela prática das virtudes epistêmicas. Isso se traduz em uma escuta radical que posiciona o paciente como autoridade máxima sobre sua experiência (justiça testemunhal) e em um trabalho colaborativo para nomear o sofrimento, co-criando um entendimento que restaura sua dignidade como sujeito de conhecimento (justiça hermenêutica).

2.     Responsabilidade Institucional e Reforma Curricular: A justiça epistêmica deve ser estrutural, superando a boa vontade individual. Isso exige uma responsabilidade institucional que promova uma reforma curricular na formação em saúde, transcendendo o modelo biomédico para ensinar sobre vieses implícitos e dinâmicas de poder. As instituições devem ser responsabilizadas pela perpetuação de injustiças, como o epistemicídio de saberes tradicionais, e promover um diálogo intercultural.

3.     Literacia em Saúde como Emancipação Epistêmica: A educação em saúde deve visar à emancipação epistêmica, não à obediência. Uma literacia crítica capacita os cidadãos a compreenderem as estruturas de poder por trás da produção de conhecimento, ensinando-os a questionar interesses ocultos e vozes silenciadas. Essa abordagem transforma o paciente de um receptor passivo em um navegador consciente e crítico do ecossistema informacional.

Em última análise, a batalha contra a desinformação na saúde não é uma guerra contra a mentira, mas uma luta pela justiça. É um esforço para reparar um tecido social e epistêmico esgarçado por séculos de silenciamento e invalidação. Ao construir um sistema de saúde que pratica ativamente a justiça epistêmica, não apenas fortalecemos as defesas da sociedade contra a falsidade, mas também reafirmamos o valor fundamental de que todo ser humano é um conhecedor digno de crédito e respeito. A confiança não é algo que se exige; é algo que se constrói sobre as fundações da justiça.

 

4 CONCLUSÃO

            A análise aprofundada da relação entre injustiça epistêmica, desinformação e infodemia revela que a crise de confiança na saúde não é um fenômeno acidental, mas a consequência lógica de um sistema que historicamente silenciou e invalidou determinados sujeitos em sua capacidade de conhecer. A injustiça testemunhal, ao minar a credibilidade de pacientes com base em preconceitos, e a injustiça hermenêutica, ao deixar suas experiências sem nome e sem validação, criam um vácuo de confiança que narrativas falsas e pseudocientíficas exploram com eficácia. A infodemia e a cultura da pós-verdade, portanto, não são as causas da crise, mas seus aceleradores, prosperando em um ecossistema epistêmico já fragilizado.

Diante disso, conclui-se que estratégias focadas apenas na verificação de fatos e no desmentido de notícias falsas são insuficientes, pois tratam o sintoma sem abordar a doença subjacente. A única solução sustentável é a construção de um modelo de saúde epistemicamente justo. Tal modelo exige uma transformação fundamental na prática clínica e institucional: a escuta radical que valida o paciente como conhecedor, a reforma curricular que ensina sobre vieses e poder, a responsabilidade institucional no combate à ignorância intencional e a promoção de uma literacia em saúde que vise à emancipação crítica do cidadão.

Em última análise, a batalha contra a desinformação não é uma guerra de informações, mas uma luta por justiça. Restaurar a confiança na ciência e na medicina passa, impreterivelmente, por tornar essas práticas mais justas, inclusivas e dignas de confiança. A saúde coletiva depende não apenas do que sabemos, mas de como, e com quem, construímos esse saber.

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[1] Doutor em Ciência da Informação. Analista de Ciência da Informação. Coordenação de Ensino do Instituto Nacional de Câncer.