A CONTRIBUIÇÃO DO USO DE PLANTAS MEDICINAIS NA AUTONOMIA DOS CUIDADOS COM A SAÚDE
Marta Rocha de Castro[1]
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
martarochaacupuntura@gmail.com
______________________________
Resumo
O uso de plantas medicinais, difundido mundialmente e utilizado há milhares de anos por populações tradicionais e povos originários é oficializado no Brasil com a criação da Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos e a inclusão dessa prática no sistema oficial de saúde no Brasil. A política entre outros objetivos valoriza o conhecimento tradicional e popular do uso de plantas e possibilita outra forma de cuidado, baseado em relações mais horizontais, trocas de conheciemtno além de incentivar outra abordagem de cuidado e do processo saúde\ doença. O presente artigo traz uma reflexão sobre os diferentes significados da saúde e do cuidado e como o uso de plantas medicinais no SUS pode contribuir com o autocuidado\ autoatenção das pessoas. Para enriquecer a discussão, trouxemos trechos de entrvistas feitas com agentes importantes na criação e desenvolvimento da PNPMF sobre o tema. Concluímos que a inclusão do uso de plantas no SUS têm grandes possibilidades de fomentar a transmissão e a valorização do conhecimento tradicional de contribuir com outras as práticas de cuidado, em decorrência de atuar de forma a promover o cultivo, a produção dos remédios caseiros, possibilidades mais efetivas de mudanças nas práticas de cuidado, reduzindo o protagonismo dos procedimentos biomédicos ou, pelo menos, ofertando outras possibilidades de tratamentos, além de fomentar o autocuidado das pessoas.
Palavras-chave: Plantas medicinais. Autocuidado. Autoatenção.
THE CONTRIBUTION OF THE USE OF MEDICINAL PLANTS IN THE AUTONOMY OF HEALTH CARE
Abstract
The use of medicinal plants, widespread and used for thousands of years by traditional and indigenous peoples, is made official with the creation of the National Policy on Medicinal Plants and Phytotherapeuticsa and the inclusion of this pratice in the official health system in Brazil. The Policy, among other objectives, is traditional knowledge and the valorization of the use of plants and another form of care based on more horizontal relationships, exchanges of knowledge in education, in addition to promoting another health approach and health care process. This article reflects on the diffrerent meanings of health and care and how the use of medicinal plants in the SUS contribute to people”s self care \ , . To deepen the discussion, we brought excerpts from entities made with important agents in the creation and development of the PNPMF on the subject. We conclude that the inclusion of the use of plants in the SUS has great possibilities of promoting the transmission and dissemination of traditional knowledge to contribute with other care pratices, as a result of acting in a way to promote the cultivation, the production of home remedies, more possibilities changes in care practices, promotion of other biological care measueres, provision of people’s self- care .
Keywords: Medicinal plants. Self-care. Self attention
1 INTRODUÇÃO
Existe um conflito entre os enfoques social e biológico no processo saúde-doença, o que representa a necessidade de discutir os diferentes significados da saúde, considerando modos múltiplos de vidas. Adoecer ultrapassa o processo estritamente biológico. Uma visão restrita a essa ótica é fruto das bases da ciência clássica, experimentalista que colocou a medicina ao lado da biologia. A complexidade do processo saúde-doença abrange diversas culturas e períodos históricos. O que é estar doente? O que é estar saudável? Tais conceitos podem variar de acordo com as práticas culturais de cada sociedade. Portanto, a saúde, a doença e os cuidados podem ser contemplados como um sistema cultural, em que diferentes sociedades desenvolveram conceitos diversos a respeito do processo saúde-doença (LANGDON, 2014).
A respeito da cultura, Langdon e Wilk (2010, p. 175), a definem como:
Um conjunto de elementos que mediam e qualificam qualquer atividade que não seja determinada pela biologia e que seja compartilhada por diferentes membros de um grupo social. Trata-se de elementos sobre os quais os atores sociais constroem significados para as ações e interações sociais concretas e temporais, assim como sustentam as formas sociais vigentes, as instituições e seus modelos operativos. A cultura inclui valores, símbolos, normas e práticas.
A cultura reflete as simbologias de determinada população e as formas como estes símbolos são compartilhados e como são ressignificados por cada pessoa em sua maneira de cuidar da própria saúde. Populações rurais, indígenas, pessoas que vivem em áreas urbanas, de diferentes classes sociais, de diferentes religiões e sistemas de crenças apresentam comportamentos e pensamentos singulares quanto a experiência da doença e sobre as terapêuticas e formas de cuidado utilizadas, assim as questões inerentes ao processo saúde-doença, o qual devem ser pensadas a partir dos contextos socioculturais específicos de forma territorializada (LANGDON; WIIK, 2010). Neste contexto, de acordo com Badke (2017, p. 86), “os saberes populares sobre plantas medicinais podem ser entendidos como sistemas culturais que possibilitam as práticas de cuidado”. E alguns sistemas culturais desenvolveram formas de diagnosticar, tratar e cuidar da saúde com plantas medicinais que são considerados sistemas médicos tradicionais, como as Medicina Tradicional Chinesa e Indiana. Já a prática popular do uso de plantas é desenvolvida por populações que residem em áreas periféricas adquirem conhecimento sobre o uso das plantas por terem acesso restrito aos serviços médicos, outras populações residem próximo a florestas desenvolvem formas de explorara- lós para sua própria sobrevivência e dentro de seu repertório cultural, tem destaque o conhecimento sobre o uso de plantas medicinais (PINTO; AMOROZO; FURLAN, 2006).
Cada população desenvolve a sua maneira práticas de cuidado, experiências sobre o processo saúde e doença e práticas de manejo e preparo das plantas medicinais. Em geral, compreendem o processo saúde-doença de forma mais holística, ou seja, considera aspectos do adoecimento que extrapolam os processos biológicos. A fitoterapia é um recurso terapêutico e de cuidado para diversas culturas.
Quando práticas de cuidado de diferentes origens convivem dentro de um mesmo sistema, podem gerar tensões, em decorrência da hegemonia de saberes técnicos cada vez mais especializados, com hipervalorizarão de questões biológicas e apoiado, principalmente, no aperfeiçoamento da tecnologia diagnóstica (SILVA, 2014). Uma característica comum a todos os sistemas médicos tradicionais e populares é o uso de plantas medicinais como forma de tratamento e de cuidado. Por isso, a fitoterapia foi reconhecida no Sistema Única de Saúde (SUS), através da Política Nacional de Plantas Medicinas e Fitoterápicos (PNPMF) (BRASIL, 2006) como uma estratégia terapêutica de cuidar das pessoas e do ambiente em que vivem, fortalecendo a Atenção Primária em Saúde (APS).
Ao estimular, que o próprio sujeito ou comunidade passe pela experiência de cultivar o seu próprio remédio, amplia o conhecimento e a reflexão a respeito das práticas terapêuticas ofertadas no território e das próprias políticas de saúde. O que fortalece a autonomia das pessoas e comunidades, bem como amplia a compreensão de diversas questões envolvidas no processo de saúde-doença. O uso de plantas carrega símbolos e significados que envolvem o local de cultivo, o manejo das plantas e as formas de preparo dos remédios caseiros que são repletos de saberes e simbologias, tendo uma forte influência com a trajetória da família e/ou comunidade, suscitando aspectos relacionados com ocupação territorial, com danos ambientais e seus impactos na saúde e com saberes e práticas a respeito da biodiversidade (LÉDA, 2019).
A valorização da fitoterapia e de outras medicinas tradicionais emerge com o objetivo de oferecer diferentes abordagens de cuidado com segurança para as diferentes populações, diluindo de certa forma a hegemonia e a posição de superioridade da medicina moderna. Atualmente possuímos diferentes práticas integrativas e complementares reconhecidas pelo SUS, possibilitando a convivência de múltiplas visões, às vezes antagônicas, e abordagens terapêuticas sobre o processo saúde-doença. De um lado, a biomedicina, cuja abordagem de cuidado e terapêutica é baseada na prescrição de medicamentos e autoritária, enquanto outras medicinas tradicionais colocam o ser humano como um agente de sua própria cura, um sujeito ativo e com conhecimentos muitas vezes geracionais, o que traz uma perspectiva mais voltada para a autoatenção e outras para o autocuidado. Tais características demonstram a importância em conciliar diferentes abordagens de cuidado. Para complementar a nossa reflexão iremos abordar também os conceitos de cuidado de si, autocuidado e autoatenção, tecendo uma discussão com base nos resultados da pesquisa, parte de minha tese de doutorado.
2 OS DIFERENTES SIGNIFICADOS DA SAÚDE, DA DOENÇA E DO CUIDADO: autocuidado e autoatenção
O paradigma da medicina moderna ou da biomedicina é apoiado por uma ciência apregoada como neutra e alinhada ao mercado, a qual estabeleceu os profissionais da saúde como definidores das tecnologias médicas. Embora essa definição seja mais pautada pelos interesses econômico e mercadológico do que pelos próprios profissionais de saúde. O que torna a prática médica apenas uma reprodução de protocolos padronizados, com pouca ou nenhuma reflexão sobre o individuo que adoece. Além de colocar os sujeitos ou “pacientes” numa posição em uma posição de passividade, aguardando diagnósticos e prescrições para tratar da sua saúde. Reflexo de uma agenda de governos que definiram políticas de apoio a este atual modelo de formação e de pesquisas na área da saúde, da qual o SUS tentar romper.
Ao longo dos séculos, diversos modos de governar, impuseram aos sujeitos diferentes formas de ser, é dentro deste contexto que se insere as práticas de si ou o cuidado de si, como um ato político e social de resistência a este poder. Cuidado de si, foi um tema abordado por Foucault (1988) e está atravessado por dois conceitos que organizam a sua obra: o biopoder e a biopolítica. Por biopoder deve-se entender a estatização da vida biológica, um esvaziamento da subjetividade e do direito sobre o próprio corpo (BUB et al., 2006). A biopolítica tem como objeto o corpo múltiplo, a população, estuda os fenômenos de massa em longo prazo, tentando prevenir e estimar estatísticas, perseguindo o equilíbrio da população e sua regulamentação (BUB et al., 2006). O cuidado de si seria uma forma de embate diante do esvaziamento da subjetividade do sujeito e do controle sobre o seu próprio corpo.
Assim, o cuidado de si pode ser constituído de exames (matinais e vespertinos), exercícios de memorização de princípios, cuidados com o corpo, regimes de saúde, exercícios físicos sem excesso, satisfação das necessidades, meditações, leituras, anotações e ainda conversas com um confidente, amigo, guia ou diretor de alma (PORTOCARRERO, 2011). Foucault (1988) faz uso deste conceito como forma de se opor à estatização da vida biológica e ao poder e controle dos corpos.
O pensamento cartesiano foi de grande importância para o esquecimento do cuidado de si. Com o processo de fragmentação do ser humano, tais cuidados foram assim delegados a determinados especialistas do corpo, da mente e da alma. O pensamento cartesiano enxerga o corpo como uma máquina que precisa de reparos técnicos quando apresenta defeitos. Dentro deste paradigma as dimensões de cuidado são transformadas e o cuidado de si desaparece. Para Foucault (1988), o cuidado de si teria perdido sua importância com a introdução, na filosofia moderna, do princípio da evidência da consciência, tal princípio questiona as condições e os limites do acesso do sujeito ao conhecimento, situando-as no próprio conhecimento, através de uma analítica da verdade (PORTOCARRERO, 2011). O conhecimento científico se coloca então de maneira absolutamente necessária como conhecimento amoral. Ele implica uma disjunção entre ciência e consciência no sentido moral do termo (MORIN, 1984).
O sujeito de “cuidado de si” trata-se de um sujeito de ação, que se apropria de seu corpo através de práticas de cuidado, o qual configura um exercício da política, uma visão de mundo, uma reflexão por parte do sujeito de seu lugar e sua participação no mundo. Esta forma de cuidar-se remete o sujeito à reflexão sobre seu modo de ser e agir, conferindo ao cuidado de si além de uma dimensão política, uma noção da ética como estética da existência (BUB et al., 2006).
Outros dois conceitos, que colocam o indivíduo em ação em relação aos cuidados com a saúde, são os conceitos de autocuidado e autoatenção. O termo autocuidado foi mencionado pela primeira vez, em 1958, pela enfermeira Dorothea Elizabeth Orem, para se referir a ações orientadas por profissionais e executadas pelo paciente em prol de sua saúde e bem-estar (SILVA et al., 2009). Autocuidado é um conceito “médico” que trata da adequação do paciente para incorporar os valores e as instruções da biomedicina (LANGDON, 2014, p. 1028). Trata-se de uma série de práticas que o sujeito é instruído a seguir em prol da recuperação de sua saúde e em busca de uma vida saudável. O autocuidado se concretiza através de práticas de cuidados orientadas por profissionais e executadas pela pessoa que se encontra adoecida para que tenha uma melhor qualidade de vida, saúde e bem-estar (BUB, 2006, p. 154).
O autocuidado está vinculado à biomedicina, a instauração de outro regime de controle, como prescrições de comportamento e medicamentos. A noção de autocuidado se reduz ao biológico, não se atentam para as relações sociais e suas interferências emocionais. O indivíduo apenas deve seguir o que é sugerido pelos profissionais, e acabam controlando mais do que cuidando da própria saúde (FLEISCHER, 2014), não deslocando o sujeito da sua condição de paciente.
Por sua vez, autoatenção em saúde é entendida como todas as práticas que contribuem para assegurar a reprodução social das pessoas e dos grupos sociais. O conceito de autoatenção é o que mais se aproxima da concepção de cuidado das medicinas tradicionais e populares por compreender as escolhas por práticas de cuidado que vão desde prevenção de doenças, explicações do adoecer, alívio e cura dos sintomas que partem do indivíduo ou família (MENÉNDEZ, 2003). Para esse autor, autoatenção se relaciona com todos os recursos terapêuticos biomédicos de outras culturas, empregados na busca de prevenção, tratamento, controle, alívio e/ou cura de uma determinada enfermidade (MENÉNDEZ, 2003, p. 198). A autoatenção está relacionada ao significado que a população atribui as suas práticas de saúde. Essas práticas são utilizadas para diagnosticar, prevenir, aliviar e curar os problemas de saúde, muitas vezes sem a intervenção direta de curadores, usando como base os saberes transmitidos através de gerações (BADKE, 2017).
A autoatenção se difere do autocuidado por não haver, necessariamente, uma intervenção direta por parte de um médico, sendo uma prática de caráter mais autônomo e está ligado a todas as formas de autoatenção necessárias para assegurar a reprodução biossocial dos sujeitos e grupos no nível dos microgrupos, em especial do grupo doméstico (LANGDON, 2014, p. 1025).
A autoatenção tem uma relação com a fitoterapia tradicional, originárias de diferentes curadores, com suas próprias visões de mundo, cujos saberes são herdados e atravessam gerações. Normalmente tem um vínculo com a falta de acesso ao cuidado biomédico ou são praticadas de forma paralela ao SUS, sem que este dê importância desta prática de cuidado, em decorrência da hegemonia da biomedicina, conforme já explicado.
3 METODOLOGIA
Os resultados apresentados neste artigo são parte da pesquisa de doutorado “A importância dos saberes tradicionais e científicos para as práticas de cuidado em fitoterapia no SUS”, realizado pelo programa de Geografia e Meio Ambiente (PUC- RIO) aprovado pelo CEP, via submissão pela plataforma Brasil, parecer CAAE: 20457719500005279.
A metodologia consistiu em investigações qualitativas realizadas por meio de entrevistas semiestruturadas com profissionais pertencentes ao SUS de municípios do Estado do Rio de Janeiro (Volta Redonda, Barra Mansa) e de outros Estados: Joinville (SC), São José (SC), Betim (MG) e Salvador (BA) e com profissionais que já atuaram em programas de plantas medicinais no Rio de Janeiro, antes e depois da criação da PNPMF.
4 RESULTADOS E DISCUSSÕES
Foram realizadas 13 entrevistas entre outubro de 2019 e maio de 2020. Quanto a perfil dos entrevistados, a maior parte tem formação em farmácia (4), seguidos de medicina (3) e enfermagem (3) e outros profissionais (enfermeiros, dentistas) com idades que variaram entre 28 e 65 anos e tempo médio de experiência na área de 20 anos, conforme tabela 1. Vale ressaltar que a quantidade de entrevistas foi reduzida em razão da pandemia. Durante as restrições sanitárias da pandemia foi possível realizar dez entrevistas de forma remota, quatro por e-mail e seis por chamada de vídeo, via aplicativo WhatsApp®.
Tabela 1: Perfil dos entrevistados.
Nº |
Formação |
Tempo de atuação (anos) |
Vínculo Institucional |
||
1 |
Farmacêutico |
16 |
Secretaria de Saúde de Betim - MG |
||
2 |
Farmacêutico |
15 |
Unidade de saúde- Barra Mansa |
||
3 |
Farmacêutico |
20 |
Fiocruz |
||
4 |
Farmacêutico |
Não informado |
Jardim Botânico e Farmanguinhos |
||
5 |
Médico |
35 |
Aposentado (HFA) |
||
6 |
Médico |
10 |
Autônomo (vínculo anterior: prefeitura municipal de Barra Mansa ) |
||
7 |
Médico |
30 |
IBICT |
||
8 |
Enfermeiro |
12 |
Prefeitura Municipal Rio de Janeiro |
||
9 |
Enfermeiro |
Não informado |
Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro |
||
10 |
Enfermeiro |
8 |
Prefeitura Municipal de Belo Horizonte |
||
11 |
Nutricionista |
20 |
ABFIT (Associação Fitoterapia) |
Brasileira |
de |
12 |
Naturólogo |
5 |
Atualmente autônomo
Vínculo anterior: Barreiros, SC |
Policlínica |
de |
13 |
Dentista |
Não informado |
Secretaria de Saúde de Volta Redonda |
Fonte: dados da pesquisa
Badke et al. (2019), ao pesquisar sobre os significados que as pessoas atribuem à utilização de plantas nas práticas de autoatenção em situação de padecimento, identificaram que as experiências e práticas de cuidar de si e do outro, por meio delas, permitem uma reprodução dos saberes ao longo das gerações. Além disso, representam afirmação das próprias identidades individuais e coletivas, por possuir significados próprios, como ajudar os outros, cuidar da família e sensação de bem-estar. Thiago, 28 anos, um dos entrevistados fala sobre esse conhecimento transmitido principalmente pelos idosos: “quando você vê aquelas vovozinhas chegarem com mudas de plantas e diversas receitas de chás e diferentes remédios caseiros, você entende que o conhecimento delas é diferenciado sobre as plantas”.
Outros autores que investigaram o uso de plantas como prática de autoatenção por agricultoras no Rio Grande do Sul, observou que a família é a principal transmissora dos saberes sobre os cuidados com a saúde, que atravessam gerações e que o uso de plantas medicinais é fundamental na prática de autoatenção dessa população (HERNANDES et al., 2014). Sobre a relação do uso de plantas com a autoatenção e o autocuidado dos usuários, a entrevistada Fabiana, 39 anos relata: “o uso de plantas medicinais pode promover em alguns casos a valorização desse conhecimento aos usuários, essa valorização faz com que o autocuidado e a autoatenção também apareça”. Corroborando com a entrevistada citada anteriormente, Cristiano fez uma breve analogia em relação ao autocuidado e autoatenção tomando como exemplo o uso de medicamento para gastrite:
“Um exemplo, na gastrite, você orientar a pessoa a fazer uso de 20 gotas de tintura de espinheira santa 3x ao dia. Ou recomendar que consumo 1 folha de bálsamo em jejum. Mas se você explicar para ela que a causa da gastrite é uma inflamação nos tecidos do sistema digestivo e orientá-la ao uso adequado dos alimentos e ervas para o seu biótipo, a tendência é que ela recupere sua saúde e não adoeça mais”.
Tomando como base o exemplo do entrevistado Cristiano, quando você explica para uma pessoa o que determinada erva pode causar em seu organismo, orienta sobre o uso e as vezes sobre o cultivo, você sai do campo da prescrição e entra no campo da autoatenção e conhecimento. Dessa maneira, o uso de plantas medicinais pode levar a uma maior consciência sobre cuidado como relatam outros entrevistados: “Existe sim uma percepção de ter maior controle dos procedimentos terapêuticos quando se usa plantas medicinais” (Claudio, 59 anos). “Um momento importante, onde usuário tira um tempo de sua vida para se cuidar. Além disso, a fitoterapia é uma prática terapêutica bastante efetiva e com menor ocorrência de reações adversas em relação à alopatia sintética” (Janaína, 57 anos). Estes são exemplos de orientações e práticas de autocuidado, quando um profissional prescreve uma prática que o paciente deve cumprir para cuidar da sua saúde, utilizando a lógica biomédica.
O uso da fitoterapia é heterogêneo, pois ao mesmo tempo em que está presente fortemente nas medicinas tradicionais, também está na biomedicina e é de interesse científico. Isso é reflexo do seu papel como recurso terapêutico, o qual é definido conforme o contexto cultural em que a planta é utilizada. Hoje, a biomedicina a recomenda na forma de produtos industrializados, tornando-a mais próxima da prática prescritiva e não do autocuidado.
Por sua vez, a fitoterapia tradicional é herdada de familiares, enraizada na cultura de determinada população, praticada por parteiras, benzedeiras, raizeiros que possuem forte vínculo cultural com o usuário, faz parte da mesma comunidade, suprindo a falta do cuidado biomédico ou complementando-o, a depender das circunstâncias do SUS local. Outra possibilidade de uso da fitoterapia é segundo as orientações de outras medicinas, como a Medicina Tradicional Chinesa e a Ayurvédica, que são consideradas racionalidades médicas e, por isso, tem visões diferentes a respeito do processo saúde-doença. Por isso, as medicinas Chinesa e a Ayurvédica fortalecem a autonomia dos seus usuários, estimulam mecanismos de autocura e a consciência do processo de saúde-doença (ANTÔNIO et al., 2013).
Outro aspecto que apareceu durante as entrevistas foi a dependência desta prática por falta de acesso aos medicamentos industrializados e associada à pobreza. O que confere a permanência ou manutenção da prática da fitoterapia vinculada à uma distribuição espacial e socioeconômica desigual do acesso aos serviços de saúde, conforme os resultados relatados em nosso artigo publicado pela Revista Fitos, “Normativas sanitárias e a distribuição geográfica na fabricação de fitoterápicos no Brasil”. (CASTRO E LÉDA, 2021). Nessa perspectiva, o entrevistado Thiago (28 anos) menciona que o conhecimento está associado a falta de atendimento médico:
“Dentro das favelas, dentro das comunidades, você tem postos, mas esses postos não conseguem atender a população e aí vem a história da vizinha que atende, do terreiro de macumba que atende, quem vai dar assistência a essas pessoas são muitas vezes a igreja universal o curandeiro[...]”
Outros entrevistados reforçam essa visão ao relatar a experiencia de trabalho em hospital público e em zona rural, respectivamente: “você vê muito disso no serviço público, eu via muito lá no hospital quando receitava um remédio e não tinham lá para dar e o próprio paciente substituía por uma planta que ele tinha conhecimento e acesso” (Alan, 65 anos); “já trabalhei em área rural e o pessoal sabe mesmo, conhece tudo sobre as plantas que plantam e usam quando não tem acesso aos remédios e também para tratar os sintomas quando não conseguem consulta médica” (Emanuel, 60 anos).
5 CONCLUSÃO
O uso de plantas medicinais nos sistemas de saúde de diversos países e no Brasil tem o potencial de fomentar a retomada, ou mesmo a introdução, da experiência de outras formas de cuidado. No caso das plantas, a autoatenção pode ser iniciada desde o cultivo, passando de diversas formas de manejo das plantas, até o preparo do remédio e sua autoadministração.
Compreendemos que essa experiência pode levar a uma maior consciência e autonomia do ser humano em relação à sua saúde. As populações que fazem uso das plantas medicinais passam a sua experiência através de gerações, sendo os mais velhos os que detém maior conhecimento sobre as espécies e as formas de uso.
O uso das plantas medicinais representa diferentes formas de cuidado. Quando prescritos por um profissional elas fortalecem o autocuidado, porém quando incluída em formato de oficinas, na construção de hortas comunitárias e na troca de informações, elas fortalecem a autoatenção, estimulam a autonomia e o conhecimento sobre o uso, o manejo, benefícios e contraindicações dos remédios caseiros. Compreendemos também que o conhecimento popular sobre o uso das plantas está relacionado a falta de assistência médica.
BADKE, Marcio Rossato. Significado do uso de plantas em práticas de autoatenção em situações de padecimento. 2017. 159 f. Tese (Doutorado em Ciências) – Programa de Pós-graduação em Enfermagem, Faculdade de Enfermagem, Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2017.
BADKE, Marcio Rossato et al. Significados da utilização de plantas medicinais nas práticas de autoatenção à saúde. Revista da Escola de Enfermage da USP, São Paulo, v. 53, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1980-220X2018047903526. Acesso em: 20 jun. 2022.
BRASIL. Secretaria de Atenção à saúde. Departamento de atenção básica. Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos. Brasília: Ministério da saúde, 2006.
BUB, M. B. C. et al. A noção de cuidado de si mesmo e o conceito de autocuidado na enfermagem. Texto Contexto Enferm, Florianópolis, v. 15, n. (esp.), p. 152-157, jan. 2006.
CASTRO, Maria R. E.; LEDA, Paulo Henrique. Normativas sanitárias e a distribuição geográfica na fabricação de fitoterápicos no Brasil. Revista Fitos, [s. l], v. 15, n. 4, p. 550-565, jan. 2021.
FLEISCHER, S. “O „grupo da pressão‟: notas sobre as lógicas de „controle‟ de doenças crônicas na Guariroba, Ceilândia/DF” Amazônica- Revista de Antropologia, v. 5, n. 2, p.452-477, 2014.
FOUCAULT, M. História da sexualidade 2: o cuidado de si. Rio de Janeiro (RJ): Graal; 1988.
HERNANDES, Ane Rikie Hayashida et al. Plantas medicinais como prática de autoatenção por agricultoras do sul do RS. In: CONGRESSO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA, 23., 2014, Pelotas. Anais [...]. Pelotas: UFPEL, 2014. p. 1-4.
LANGDON, E. J. Os diálogos da antropologia com a saúde: contribuições para as políticas públicas. Ciênc. Saúde Coletiva, [s. l], v. 19, n. 4, p. 1019-1029, abr. 2014.
LANGDON. E. J, WIIK. F.B Antropologia, saúde e doença: uma introdução ao conceito de cultura aplicado às ciências da saúde. Revista Latino-Americana de Enfermagem, v. 18, p. 459-466, 2010.
LÉDA, P.H. Etnobotânica aplicada às plantas medicinais como subsídio para a introdução de espécies nativas do bioma Amazônia no Sistema Único de Saúde de Oriximiná. 2019. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade e Biotecnologia da Rede Bionorte, FIOCRUZ, Belém, 2019.
MENENDEZ, E. L. Modelos de atención de lospadecimientos: de exclusiones teóricas y articulaciones prácticas. Ciência & saúde coletiva, v 8, n. 1, 185-208, 2003.
MORIN, E. Ciencia con consciencia. Barcelona: Anthropos.1984
PINTO, Erika de Paula Pedro; AMOROZO, Maria Christina de Mello; FURLAN, Antonio. Conhecimento popular sobre plantas medicinais em comunidades rurais de mata atlântica - Itacaré, BA, Brasil. Acta Bot. Bras., Alta Floresta, v. 20, n. 04, p. 751-762, dez. 2006.
PORTOCARRERO, V. Governo de si, cuidado de si. Currículo Sem Fronteiras, [s. l], v. 11, n. 1, p. 72-85, jun. 2011.
SILVA, T. R. D. Geograficidade, percepção e saberes tradicionais dos pescadores do lago Guaíba, Porto Alegre. RS. Dissertação de mestrado. Programa de Pós Graduação em Geografia, UFRS. 2007
[1] Doutorado em Geografia e meio ambiente pela Pontifícia Universidade Católica Rio de Janeiro, Brasil(2021)
Pesquisador da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.